Revista Polis

Sob a terra

Nunca me esqueço da primeira vez que eu realmente percebi que era Inverno. Vivendo em Salvador, uma cidade em que o clima só varia de “extremo calor” a “calor” a “calor com chuva”, ao meu redor nunca tiveram muitos sinais das mudanças de estação ou talvez, como eu fui descobrindo, tinham muitos sinais, só me faltava a atenção.

Pouco antes da pandemia eu comprei um bonsai. Eu tinha tido insucesso com plantas até então, mas esse bonsai era o início de uma carreira de dedo verde. E vindo a pandemia, e o isolamento, dentro do meu quarto ele era uma das poucas naturezas que eu tinha para olhar, e portanto sempre o estava olhando. Mas a medida que se aproximava junho, ele pareceu… murchar. Os cuidados que por meses tinham funcionado para mantê-lo bem e forte não pareciam surtir efeito em impedir que as folhas fossem caindo, talvez não de uma maneira exagerada, mas para mim, que velava por ele dia e noite e conhecia cada um dos seus galhinhos, certamente preocupante.

E foi nesse Inverno que eu percebi que o Inverno realmente acontecia. E que sim, meu bonsai ia murchar e parecer morrer, mas que se eu continuasse nutrindo ele, em alguns meses ao despontar a Primavera, ele estaria cheio e verde de novo – o que logo comprovei.

A Natureza tem uma inteligência secreta, que para olhos atentos não é tão secreta assim. Ela sabe a necessidade de deixar certas folhas caírem no Outono, e de manter-se um pouco quieta no Inverno, manter suas sementes sob a terra. Há tempo de vida e tempo de morte. Os ciclos existem quase que por necessidade, porque a vida se move de maneira circular ou não se move – traçamos círculos com nossas pernas ao correr, são circulares as rodas dos carros e são redemoinhos que guiam as correntes dos rios, sem falar que o tempo passa em dias e noites, em giros da Terra e giros ao redor do Sol.

Por muito tempo nós, seres humanos, nos lembramos que somos parte dessa Natureza, e que dentro da marcha da vida temos a honra de poder passar por todos esses ciclos com olhos abertos, enquanto que o resto dos seres que conhecemos o fazem como em um sono, guiados pela mão de seus destinos já traçados. Mas também, por muito tempo nos esquecemos, e como a mão já não nos alcança, de olhos abertos vagamos nos negando a andar a mesma trilha que os demais porque achamos que somos melhores, que sabemos mais. Somos bobos, isso sim. Para mim, a minha preocupação desnecessária com a possível morte do meu bonsai é prova de que ele sabia mais sobre a vida e a morte do que eu. Acredito que requer certa sabedoria para entender a hora de deixar caírem folhas e a hora de fazê-las nascer.

Quero convidá-los a andar um pouco a trilha nesse Inverno. Vejam bem o que faz a Natureza, como se despe de todas as suas camadas, fica crua, como põe no profundo da terra as suas sementes, onde o frio não alcança. Vejam como as noites e os silêncios são mais longos, e como a vontade de ficar dentro das casas é maior. Vejam como o calor, do qual tanto reclamamos no Verão, se torna um dos nossos bens mais preciosos.

Lembro de ter estudado em algum momento da escola que as pessoas que vivem no deserto usam roupas pesadas e escuras mesmo com temperaturas tão altas, porque as noites são muito frias, e as roupas retém o calor do dia e as mantém aquecidas. Acho que de certo modo, o Inverno é essa noite fria, em que aproveitamos o que nos deu a luz do Verão. Já não há muitas fontes externas de onde se nutrir, e há que alimentar-se do que pudemos reunir dentro.

O Inverno é o momento de visitar as sementes que plantamos sob a terra. Ver de que são feitas, que tipo de frutos vão brotar dali. Avaliar o que estivemos nutrindo até então, o que podemos encontrar dentro de nós mesmos. É um bom momento para conhecer a si mesmo. E nisso vamos encontrar muitos restos, muitas coisas que deixamos crescer em outras Primaveras e que agora não nos cabem mais, aquela preguiça, aquela arrogância, aquela insegurança, aquele medo, e a essas coisas há que dar fim, deixar que realmente se vão. E abrindo esse espaço, vamos encontrar também coisas muito valorosas, e são a essas coisas que temos que nos ater, às sementes de coragem, de gentileza, de amor, de honestidade, de ternura.

E o Inverno também nos dá uma grande oportunidade. De, nesse lugar silencioso, esse lugar aparentemente escuro, onde nada parece nos alcançar, encontrar aí uma luz constante, que existe independente do que exista para além dela, que nos mantém, e que diante de tantos ciclos, os supera. É essa luz, esse fogo, o qual realmente vai nutrir as nossas melhores sementes. É encontrando-o que sabemos dizer quem somos para além do que há ao nosso redor. Porque, entre mortes e vidas, algo há de permanecer, e aí está a serenidade com a qual meu bonsai deixou cair suas folhas, o lugar de onde vem essa certeza de que, eventualmente, novas e melhores folhas surgirão.

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