Revista Polis

Na casa da Musa

Começar essa cidade por um museu pode parecer algo um tanto contraditório, afinal se o museu é um local onde guardamos aquilo que faz parte da nossa história, como começaremos a cidade por esse elemento? Na verdade, estou sendo até bem generoso, pois hoje quando ouvimos falar de museu o relacionamos com um local para guardar velharias e tantas outras coisas inúteis as quais servem apenas para uma pequena parcela de eruditos ficarem admirando e perceberem diferenças entre pronomes de tratamento de diferentes épocas ou relacionados com diferentes momentos da história; dando a isso, é claro, um ar de importância quase divinal, sem o qual a sociedade mesma não poderia seguir adiante mais um passo sequer. Nada disso é um Museu.

Museu, como o nome nos evoca, fala-nos da casa das Musas e aqui cabe um pequeno adendo mitológico para compreender o que esse nome quer significar. Na mitologia Grega, as musas são as filhas de Zeus – que representa o Poder, a Lei, a Ordem e a Justiça na natureza- com Mnemósine – que é a deusa que representa a memória- em algum outro momento podemos tratar delas e suas particularidades, mas quero enforcar a sua característica mais evidente: o poder (Zeus) cristalizado na memória (Mnemósine), aquilo que podemos chamar de tradição e que é exatamente o que confere ao ser humano a sua capacidade de Identidade. Poder, memória, tradição e identidade… como todas essas coisas podem articular-se dentro da ideia do que é um Museu?

A identidade, conceito um tanto abstrato, ligado à ideia do ser, diz respeito a como o indivíduo se percebe e se reconhece de maneira verdadeira. Muitas vezes podemos assumir máscaras durante o nosso dia a dia em sociedade para responder a um cargo ou resolver uma certa questão em nossa vida, mas aquilo que nós somos realmente enquanto indivíduo dificilmente consegue se mostrar aos demais e só nós mesmos temos contato com isso, e quando temos contato. A ideia de identidade irá se conectar com o conceito de tradição, palavra que tem a mesma raiz do verbo trazer e corresponde aquilo que a civilização recolheu ao longo do tempo de experiências positivas e negativas, fazendo com que não precisemos viver nossas vidas apenas com o nosso arcabouço pessoal de experiência, mas que possamos contar com uma espécie de biblioteca, com um depósito de experiências universais, às quais podemos recorrer quando necessitamos superar algum desafio ou, mais importante, educar-nos sobre os aspectos profundo e válidos de nossas vidas.

Essa tradição se conecta com a memória, pois memória é história. História é, na mitologia Grega, Clio, uma das nove musas que são filhas de Mnemósine. Essa relação íntima entre a memória e a história vai fazer com que comecemos a perceber que há uma conexão entre as nossas ações pessoais e nossa ação coletiva enquanto humanidade num sentido mais amplo e que comecemos a ajustar todas elas num mesmo eixo que vai desde nós mesmos, pessoalmente e enquanto indivíduos até toda a humanidade de maneira universal; isso é colocar as nossas ações diante de um prisma menos pessoal e mais voltado aos princípios e àquilo que move nossas vidas. E todo esse eixo vai conectar os dois terminais, os dois pontos, o micro com o macro, fazendo com que compreendamos a noção daquilo que vem a ser o poder propriamente dito. O poder é, antes de qualquer coisa, o poder que cada pessoa tem sobre si e sobre as ações que irá tomar sem deixar ser afetada pelas circunstâncias; esse poder necessita ser cultivado através do entendimento, isto é, da assimilação do conhecimento, tornando-o sabedoria e passando a ser útil para todos aqueles que nos rodeiam. Nossas ações então, a princípio muito pontuais e diminutas, vão se propagando tal qual uma pedra lançada num calmo lago: vão se formando círculos concêntricos que se propagam até onde nós não sabemos ao certo e tem a capacidade de mudar rumos inteiros e definir condutas de inúmeras pessoas. Mas tudo começa quando sabemos quem nós somos.

Por isso e muitas outras coisas necessitamos resgatar o sentido original do que vem a ser um museu, que não é uma casa para se guardar velharias e coisas que parecem terem saído de lugares assombrados, mas para que possamos resgatar à memória daqueles que o frequentam, o quão grande poder ser um ser humano e o quão bondoso, valente e generoso ele pode ser. Além disso guarda as memórias coletivas, nossa tradição, que conecta poder e identidade ao nos relembrar os princípios humanos.

É, acho que chegamos então numa conclusão necessária para esse início de cidade: para sabermos para onde queremos chegar é fundamental saber quem nós somos… Mas, quem nós somos realmente? Acho que vamos precisar falar disso mais adiante…

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