Conhece-te a ti mesmo é certamente um aforisma conhecido e muito repetido, principalmente em nossos dias de alta velocidade de transmissão de informações; é o primeiro passo que precisamos dar na filosofia e talvez seja também aquele que mais mudanças trará com a sua assimilação. Certamente é algo que é muito mais fácil de falar do que de fazer… As pessoas, em geral, repetem essa máxima como se de um jargão se tratasse e pudesse integrar uma série de frases de efeito. “Você precisa se conhecer melhor” diz o nutricionista, o médico, o padeiro, o companheiro de fila do banco o qual nunca mais veremos, diz o coach, o psicólogo, e palpiteiros profissionais da vida alheia. Será que todos sabem o que é se conhecer e apenas eu, um aspirante a escritor, não sei do que se trata? Acredito que tu também, ó leitor, indague-se sobre isso e queira saber algumas respostas. Vamos tentar alcançá-las.
Os antigos ou, melhor dizendo, os clássicos, não baseavam-se apenas em suas próprias experiências para chegarem a uma conclusão acertada sobre o que quer que seja. Não bastava apenas que se tivesse uma opinião favorável a este ou aquele assunto, mas que essa opinião pudesse ser comparada à outras e passassem por uma espécie de peneira, filtro ou confrontação. Assim, se a opinião sobrevivesse à confrontação de outras ela poderia ser considerada válida, se sobrevivesse ao contato com a vida, isto é, com a realidade que nos cerca, a natureza e a vida em sociedade, da qual todos necessitamos. Essa prática de confrontação e teste de uma opinião, suposição ou tese recebeu o nome de dialética, e essa arte foi desenvolvida a um nível suficiente para ser considerada uma arte e uma ciência, dando base para o que viria a ser o método científico que utilizamos atualmente.
Certamente aquele quem melhor demonstrou essa técnica acontecendo para nós foi Platão, uma vez que criou obras filosóficas que falavam sobre os mais diversos assuntos e em todas elas que esboçou as suas ideias, criou-as em formato de diálogo, o que permite que possamos observar como uma colocação pode dar espaço e suporte para um outro entendimento e como, juntos, unidos na busca da verdade, um professor e um discípulo poderiam alcançar um melhor entendimento da natureza, do universo, da verdade e, é claro, de si mesmo. Os diálogos são obras fascinantes, e ainda que sejam um grande desafio à nossa inteligência e entendimento, à nossa paciência e atenção, são repletos de cor, de vida, de experiência real – vivenciada – , beleza e (por que não?) humor. Mas deles podemos tratar num outro momento, juntamente ao aprofundamento dessa arte da dialética que, segundo Plotino, nos permite conhecer com clareza qualquer assunto.
Tomemos então uma situação que nos fala Platão em uma das suas passagens da República, grande obra que trata do tema da Justiça. Nela, em um determinado momento, Platão nos fala que a alma do ser humano tem diversas características, as poderíamos comparar com alguns elementos. Existe em nós um elemento ou uma alma que tem diversos apetites insaciáveis que assemelha-se a uma mistura de inúmeras criaturas (uma quimera), um outro elemento que é irritadiço e se lança às coisas com violência ou foge covardemente, como um leão, e existe em nós o elemento humano. A essas três partes ou atributos, deu-se os nomes, respectivamente de alma concupiscente, alma irascível e alma racional.
Cada uma delas possui uma razão de ser, qualidades e defeitos e nenhuma delas é dispensável como hoje gostamos de pensar sobre as coisas das quais não gostamos. Como já deves ter percebido, necessitamos lidar com esses animais para que possamos chegar a um equilíbrio, a uma harmonia e a chave para saber se alguém se conhece bem é quando é notório que essa pessoa foi capaz de alcançar a harmonia, que não é uma questão de estar “de boa”, mas um necessário estabelecimento do que é mais importante dentro de nós.
O leão é um animal feroz que necessita ser domado para que não fique descontrolado e possa se tornar o nosso aliado nas coisas que necessitamos ou queremos alcançar. Podemos dizer que pouca ou nenhuma ambição temos na vida, mas isso é uma fuga da realidade, pois em algum momento da nossa vida, ela nos testará, irá exigir de nós ação, atitude, iniciativa, em uma palavra, coragem, onde essa virtude entra não apenas com a capacidade de ação, mas com a necessidade de agir pelo bem; aquele que é corajoso sente medo, mas a sua necessidade de ser bom é maior do que o seu medo; coragem significa “agir com o coração” e é uma virtude muito mais profunda do que concebemos habitualmente.
A quimera é o elemento em nós que cuida dos nossos apetites ligados a nossa sobrevivência, isto é, comer, dormir, descansar, reproduzir-se, conforto, etc. São tantas as cores que me parece muito acertado a representação por esse animal imaginário. Não podemos deixar de fazer nenhuma dessas coisas, posto que, elas estão entranhadas em nós, no nosso código genético, em nossa alma biológica e são essenciais para a nossa sobrevivência; então como fazer para que não caiamos em uma postura viciada? De maneira muito simples, a resposta está na moderação, em não ter nada em excesso, que irá resultar na virtude chamada de temperança. O que vem a ser temperança? É uma palavra que tem a sua origem na têmpera, que é o ato de dar o fio correto e a dureza correta a um metal, geralmente associamos com o ato de forjar uma espada. Nesse ato a espada precisa ser aquecida, moldada através de golpes de martelo na bigorna da forja, ser surrada até o ponto em que fique no formato necessário para depois ser resfriada; o que isso tudo quer nos dizer? Simbolicamente, necessitamos colocar uma pressão em nós mesmos, colocar fogo, não atender nossas necessidades para que não fiquemos viciados nelas, no entanto, necessitamos depois ser resfriados, atender essas mesmas necessidades, comer o necessário e descansar o necessário senão vamos partir.
O elemento humano é esse ponto mais importante que deve deliberar sobre o que dará para os animais que tem que domar. É o ponto em nós que deve desenvolver a virtude da prudência e decidir em qual momento irá lançar mão de seus recursos inteligentes para ter o domínio dessa fauna completa que tem dentro de si, pois de outra maneira, o rugido do leão e as manifestações dos outros animais se tornará tão alta que a sua voz, o seu clamor humano, será apagado em meio aos bichos. Para vencer esses elementos dentro de si, o ser humano precisa desenvolver a sua inteligência, que nada tem a ver com o acúmulo de títulos e informações “interessantes”, e com ela direcionar o que cada uma dessas forças fará, pois de outra maneira, não temos chances, seremos tomados por esse verdadeiro zoológico interior e terminaríamos por nos tornarmos mais animalizados do que os animais.
Esse é o campo de trabalho que tem cada ser humano: a sua alma e dentro dela esses inúmeros seres de força anímica e biológica. Enquanto não pudermos fazer com que esses animais se aquietem um pouco, pouco ou nada poderemos saber sobre nós mesmos. De modo que, para começar a se conhecer, é necessário estar domando o leão e educando a quimera interior. Assim vamos começar a ouvir um pequeno sussurro, uma voz distante e fugidia, provavelmente expressando um gemido de dor, e então um verdadeiro diálogo interior pode começar, certamente de maneira dialética. Então poderemos falar algo para conhecer esse ser interior… Ou talvez fiquemos mudos ao sermos surpreendidos com a pergunta: Quem és Tu?
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