Domar o leão e educar a quimera é uma tarefa árdua e sem a qual não poderemos nos tornar serenos e nem sermos capazes de conhecer as nossas tendências ou impulsos. No entanto, não é como se fossemos divididos em partes como fatias de uma pizza, mas sim que todos esses pedaços não o são em essência, pois o ser humano é um todo integrado. É como se fizéssemos uma mistura de água óleo e açúcar em um copo e misturássemos; os elementos ficarão mexidos e confusos por um tempo, porém, aquietado o movimento e estando a água pacificada, poderemos distinguir bem cada fase da mistura. Da mesma maneira, acontece conosco, assim como quando estamos contemplando a imagem do lago em que possui uma montanha próxima: se lançamos uma pedra e a água fica mexida, não temos como perceber bem a imagem da montanha próxima ao lago.
A água representa nossa psiquê, que compreende nossos pensamentos e as nossas emoções. Nossas emoções e pensamentos, quando pacificados, permitem que possamos distinguir bem o que é cada parte e qual a influência que cada uma dessas partes exerce sobre nós, pois, esse todo integrado que é o ser humano, apresenta diferentes forças que ficam mais claras na tranquilidade da reflexão, longe da turba e do movimento para fora que fazemos diariamente. Não digo com isso que o movimento exterior é mal em si, há que pôr cada coisa em seu lugar adequado, e o movimento exterior não é o indicado para saber sobre a nossa verdadeira natureza, pois é nele que os elementos da alma humana ficam mais afetados, confundidos pelas interferências, seja dos comentários alheios, seja daquilo que almejamos enquanto pessoas públicas que relacionam-se com outras pessoas em sociedade, seja porque muitas vezes queremos mudar de ideia, mas nos comprometemos com algo de maneira irrefletida. Enfim, diversos motivos que caracterizam exatamente a atividade exterior: a pluralidade, ou seja, as múltiplas expressões ou possibilidades.
Então como vamos atingir o conhecimento interior? E se a ação externa não serve para isso, serve para quê? São duas perguntas profundas, talvez demais até para um simples artigo, porém, tentarei ser o mais sucinto que conseguir. A inteligência é aquilo que marca o ser humano, pois é o ápice do elemento que o caracteriza: a sua mente. Para alguns, isso se traduz na razão, porém, gosto de especificar a inteligência por já ter em sua raiz etimológica, uma inclinação àquilo que chamamos de boa escolha, discernimento, percepção imediata da verdade, que implica em distinguir o que é falso do que é verdadeiro, o que é belo do que não o é. Enquanto a razão opera na busca daquilo que é razoável, equilibrado, proporcional ou um meio termo… enfim, inteligência implica luz, enquanto razão uma espécie de filtro ou peneira que visa encontrar o melhor para cada momento. Se entendemos qual o mecanismo da inteligência e a quê ela serve, entenderemos como nos conhecer melhor.
Ora, a inteligência atua de duas maneiras: na contemplação da verdade e na consideração da moral. Nos dizeres de Plotino, a alma humana tem dois trabalhos, que realiza na medida em que desperta e se conforma a essa inteligência: a contemplação e a organização. A contemplação é voltar-se para dentro, buscar essa imagem da montanha refletida no lago, voltar-se para o Ser. O Ser aqui entra com letra maiúscula para que entendamos que se trata não de um elemento genérico ou de uma figura metafórica, mas sim de nós mesmo enquanto seres humanos de forma profunda e ilimitada. O segundo trabalho, a organização, vem logo após a contemplação e se caracteriza como uma ação exterior que visa replicar a imagem que o filósofo contempla no lago, busca recriar aquilo que viu em um lugar dentro de si mesmo em que não há tempo e em que o espaço é sempre infinito e sempre o mesmo. Assim, a ação externa prova o que é interno através de como conseguimos manter a nossa intenção inicial do momento em que a concebemos até o momento de sua realização.
É como um fluir de um rio que sai de sua nascente e chega puro até o oceano; no caminho do rio ele se depara com inúmeras coisas que o deixam poluído, cheio de elementos estranhos, muitas vezes até mesmo impróprio para consumo. No entanto, se o fluxo do rio se mantêm forte e a torrente d’água for muita, a sua pureza não é afetada, pois essas interferências não bastam para poluir o rio. Assim que, na tranquilidade do nosso interior devemos nos habituar a ter uma visão clara do que somos, uma visão que não é influenciada por nenhuma opinião, que nasce em nós de maneira natural, como o impulso que nos leva a querer aprender a tocar um instrumento ou escrever poesia, mesmo que essas produções nunca saiam de uma gaveta escondida. Esse impulso não está condicionado a uma realização, pois encontra uma realização em si mesma quando o artista faz, ou melhor realiza ou atua de acordo àquilo que ele é em sua essência, não é condicionado por nada. Quantas vezes já tivemos uma ideia e quisemos levar ela a uma realização digna, a uma concretização própria da condição a que ela tem quando foi concebida em nossa mente e nosso coração, mas não conseguimos chegar à sua realização? Quantas vezes deixamos de falar aquilo que realmente pensávamos e o que era importante e caro a nós, o que consideramos como bom, como justo e belo, mas que não o falamos, pois tememos sermos julgados ou ridicularizados pelos demais? Tudo isso tem a ver com moral. A moral não tem nada a ver com um sistema de doutrinação e adestramento, mas sim com um espelhamento, com a organização de que falamos; temos de colocar as coisas em ordem, temos de pacificar esse lago para que a imagem que temos de nós mesmos, isto é, a maneira como vivemos, corresponda a visão que nós temos de nós mesmos nas concepções mais altas e mais excelentes. A moral é a inteligência concretizada em nossas ações, sentimentos, palavras e pensamentos.
Todos podemos perceber a mudança que acontece com o passar do tempo, sejam elementos relacionados ao tempo e à mudança das estações, sejam mudanças em nosso corpo, sejam mudanças no ambiente que nos rodeia a todos… Tudo está em movimento, tudo flui, “panta rhei” como diria Heráclito, este, assim se diz, passava-nos o ensinamento de que não podemos tomar banho duas vezes em um mesmo rio; isso porque não só o rio que passamos não é mais o mesmo como nós mesmos não somos mais os mesmos. Podemos perceber isso claramente em nossas aspirações, desejos, no que almejamos alcançar em diferentes níveis, em nossas preferências e até mesmo na maneira como organizamos e hierarquizamos os diferentes elementos que compõem nossas vidas. No entanto, se tudo em nós fosse mudança completa, como poderíamos perceber de fato a mudança se absolutamente tudo em nós mudaria? Para aceitarmos essa mudança perpétua, é necessário aceitar também que, para além de todas as coisas, existe algo permanece, algo que está alheio à turba do mundo, que não é alterado pelas circunstâncias. Esse elemento que não é alterado pelas circunstâncias é aquilo que efetivamente somos e que não se deixa confundir com as mudanças. Necessitamos então estar cientes disso e começar a fazer um movimento para buscar isso, um movimento que começa por uma parada, dar um tempo nas coisas e apreciá-las com calma e tranquilidade, o movimento de estar contemplando a imagem do lago que reflete a única coisa que permanece com a mudança da paisagem: a montanha.
Todo esse processo implica em nós certas mudanças de perspectiva, da maneira como encaramos as coisas que acontecem em nossa vida, necessita uma ampliação do nosso nível de consciência. A reflexão e meditação (podemos falar delas depois), difíceis no começo, passam a serem parte do nosso comportamento e mesmo uma necessidade de nossa alma quando fazemos corretamente. Aos poucos vamos aprendendo a arte de tomar uma decisão ou ter uma visão de nós mesmos que não se confunda com as coisas. Até que um dia, iremos deixar de contemplar a imagem no lago e passar, efetivamente, a subir a montanha.