Revista Polis

Conhece-te a ti mesmo – γνῶθι σεαυτόν

Continuando a jornada de encontrando um lugar no mundo e após sair da casa da musa, me pus a refletir novamente sobre como erguer uma cidade em seus fundamentos mais profundos. Tudo começa com o ser humano encontrando aquilo que não apenas o chama em seu íntimo, mas que ele possui uma especial capacidade para lidar e manter ao longo da vida; isso é encontrar o lugar no mundo, pois não se pode apenas gostar e querer estar nesse lugar, mas é necessário ser capaz de dar o que esse lugar exige. Sem isso, nada feito, ainda não encontrou a vocação. A vocação vai exigir-nos preparo e são poucos os casos em que se nasce absolutamente dotado para isso, geralmente somos como um pavão que nos faltam várias plumas e devemos adquirir elas mediante a prática, responsabilidade e esforço. Podemos falar especificamente sobre isso, em outro momento, caso queiram.

Na casa da musa, isto é, no museu, devemos ter acesso a algo fundamental não só para a ideia, mas para a vivência e prática da humanidade. Temos uma enorme tendência a pensar de maneira materialista em nossa vida e arrisco a dizer que gostamos de afirmar que estamos sozinhos no mundo e que todos os caminhos que trilhamos o devemos fazer por nossa conta, mas a verdade é que não, não estamos sozinhos no mundo, não estamos ao acaso e, se pararmos de olhar apenas para o espelho e nos arriscarmos a olhar ao redor, iremos encontrar pessoas as quais nos identificamos e, se não as encontramos vivas, encontraremos as suas obras para nos espelhar e para nos nortear, nos guiar em uma jornada rumo ao desconhecido e ao mistério que é o conhecimento das coisas que existem na natureza e das coisas que habitam o interior de nós mesmos, de vastos oceanos que somos, e que devemos aprender a construir a barca que navegue nos mares que meneiam em nossos corações, levando e trazendo dores, risos, declarações e confissões. A esta memória da humanidade, chamamos de tradição e a tradição é a barca que nos permite navegar pelos nossos mares interiores, cada livro, cada técnica, cada conhecimento herdado dos antepassados, é um elemento que nos auxilia nessa navegação, é uma parte do projeto, do plano da nave.

Desta maneira, é como no antigo mito de Jasão que ganha um barco muito poderoso de um ancião construtor de barcos e preenche esse barco com os maiores heróis que conhecemos da Grécia. Estes então batizam o barco com o mesmo nome do seu construtor: Argo, assim, aquele que o conduzem são “os argonautas” e temos então um mito chamado Jasão e os argonautas. Está a par da tradição é exatamente assim: não só contar com uma potente embarcação feita por aquele que recolheu o melhor de sua experiência e a condensou, mas também contar, na hora das provações da vida, com os conselhos daqueles que foram os melhores naquilo que fizeram, de modo que não iremos sucumbir ante uma hidra ou uma harpia ou uma sereia de cantos enganadores. Não, já temos nosso lugar, sabemos onde está fincado o nosso pilar, contamos com os bons conselhos, não iremos naufragar.

Conhece-te a ti mesmo – γνῶθι σεαυτόν

Mas agora imagino que pergunta-te sobre o título do texto e por qual motivo ainda não falei sobre ele e apenas fiz um grande retrospecto dos dois primeiros textos de nossa jornada. Na verdade, tudo isso está conectado com essa afirmação: conhece-te a ti mesmo. Esse aforismo, pode ser compreendido como um conselho, como uma forma de vida ou, como talvez seja mais apropriado, como um imperativo, ou seja, uma lei que conduz o nosso percusso pela vida. Conhecer-nos responde a primeira pergunta da filosofia: “quem sou?” e ir atrás dessa resposta faz com que descubramos pelo caminho uma série de outras perguntas com suas respectivas respostas, como uma montanha a qual, para chegarmos a sua base, que ainda não vemos, precisamos passar por um longo vale, com florestas, caminhos duvidosos e escarpas, mas se mantivermos a visão da montanha, começaremos a chegar em sua base.

Dificilmente temos uma resposta definitiva para ela e aqueles que a digam com muita precisão, costumam não saber exatamente sobre o que falam. O próprio Sócrates, a quem podemos considerar como o fundador da filosofia, não somente por uma questão de metodologia, mas principalmente pelo seu exemplo de vida, dizia que “só sei que nada sei” e era justamente nesse princípio de humildade, de saber que ignorava muitas coisas, que foi considerado o maior sábio de seu tempo.

O que quero dizer com tudo isso é que devemos incorporar para nós essa postura investigativa de querer saber, de querer se aproximar ao que é verdadeiro, de saber que as nossas opiniões são insuficientes para alcançar a verdade, de que ela é como Palas Atena que, é mortal com sua lança, porém também acolhedora com o seu escudo, possui os olhos brilhantes de lucidez, não tolera o fingimento e é pura e imaculada. Representada também por uma coruja, tem a capacidade de enxergar na escuridão e não se confundir nas trevas. É também uma guerreira que já nasce armada, pois na caminhada para a sabedoria devemos superar uma série de embates e sem a companhia de Atena é muito difícil que se consiga vencer os desafios da vida e dela extrair os seus aprendizados… Assim concebiam esses antigos filósofos.

Como podemos então ignorar essa postura? Não dá para negar que todos temos sonhos, aspirações e anseios que sentirmos ser maiores do que nós mesmos. E que não sabemos de onde vêm esses impulsos que nos falam de que há um sentido maior na vida, de que há um lugar para nós junto às estrelas, de que podemos mais; não para nós mesmos, não estou falando dos nossos elementos egoístas que buscam cada vez mais e mais performance para chegar a lugar algum, mas de que podemos mais enquanto somos um representante dessa humanidade e portanto dotados de ferramentas poderosas, de luz, de fogo, o fogo dado por Prometeu, que nos despertou de um profundo sono e tornando tudo à sua verdadeira cor, trazendo às coisas seus verdadeiros aspectos e seus verdadeiros nomes… Sim, todo ser humano é filósofo, pois no momento em que deixa de ser filósofo, também deixa de ser humano.

Filosofia vem de “philo” mais “Sophos” e quer dizer amante ou amigo da sabedoria. Não estou falando de uma profissão, evidentemente, mas de uma postura de vida, de uma maneira de se comportar que é muito particular, pois quando chega a noite e começamos a sonhar acordados com aqueles anseios que queremos desvendar, quando pensamos sobre aquilo que vivemos e sobre o que ainda vamos viver e como todas essas coisas se conectam, se relacionam e, acima de tudo, mantém a sua unidade, fazendo com que nossas ações passem a serem balizadas por esses momentos que chamamos de reflexões, estamos praticando filosofia, estamos buscando sermos mais coerentes conosco mesmo, estamos buscando respostas, estamos conhecendo a nós mesmos.

Voltando então ao aforismo de Delfos, é como se estivéssemos novamente ante o frontão daquele antigo templo, encarando sua mensagem e travando aquele diálogo interno, pois sabemos que só poderemos entrar nesse templo se primeiramente pudermos entrar em nós mesmos. Um passo para dentro significa uma nova possibilidade fora, um novo mundo que se abre, um novo estado que se vive. Todas essas possibilidades nos fazem lembrar do próprio deus tutelar de Delfos – Apolo-. Esse apolo que aparece sob diversos aspectos como: o citaredo, o arqueiro, o profeta, o senhor da cura, da harmonia e da medicina. Talvez isso nos dê uma pequena pista para esse “conhece-te a ti mesmo”. Talvez precisaremos de muitas camadas vencer, escavar, e aceitar antes que possamos afirmar uma pequena verdade sobre nós mesmos, talvez necessitemos amadurecer antes de chegar nisso, talvez essa resposta nos seja transmitida quando chegar o momento… Talvez.

Mas, com certeza necessitaremos manter a nossa conversa em outro momento, pois é a alma humana, uma dádiva por demais grandiosa e necessitamos de mais linhas para falar sobre ela. Num outro momento, num outro patamar, numa outra concepção. Até lá, podemos ir conversando uns com os outros por aqui. Deixem-me saber o que têm achado, compartilhem suas dúvidas e também suas respostas. Preciso voltar à construção da cidade.

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