Revista Polis

06 | Superando a dor na dança da vida

Caro amigo Náufrago,

Antes de responder diretamente a sua carta, queria abrir um outro tema. Estive refletindo ultimamente sobre os dias e as noites, sobre suas semelhanças e diferenças. Depois de meses de noites silenciosas num navio a caminho de meu atual destino, aportei em uma cidade cujas noites eram cheias, longas e tão vivas quanto seus dias. Sempre me arrebataram os mistérios do dia, mas também sempre soube que eram ricas as noites, e aqui estou tendo a oportunidade de explorá-las. Há algo um pouco mágico nisso de que, enquanto a maioria dos seres vivos tem uma preferência, um ciclo biológico muito definido entre aqueles que vivem o dia e aqueles que vivem a noite, a nós seres humanos coube viver os dois – a boa e velha natureza dupla do homem, refletida em mais um ciclo. Talvez nós, como seres humanos, vivamos não na noite e não no dia, mas nos pontos médios, nos entardeceres e amanheceres, no transpassar do horizonte, entre um mundo e outro, sempre velando por essas portas.

Como te disse em minha última carta, caro amigo, carrego o peso do meu futuro e não do meu passado, mas tal peso não deixa de ser esse fardo. Certamente me deparei com muito que me comoveu, e essa é a finalidade de toda a minha jornada – me construo não para mim, porque não me tenho utilidade, mas para melhor atuar no mundo, onde sim posso aportar com aquilo que tenho recolhido. E pelo caminho que percorro deixo em cada canto algum bom pedaço de mim, que possa acalentar um coração, colorir uma vista ou manter vivo um sonho. Acredito que desses momentos esteja falando, em que podemos agir com nossos corações e ser aquilo que somos. É nisso também que encontramos, ou se torna imprescindível encontrar devido ao tamanho de certos desafios, a força que nos faz superar-nos e assim crescer, sermos melhores. Sem essa necessidade que a vida muito pedagogicamente nos concede, dificilmente alçariamos mais altos voos.

Agradeço por responder minha pergunta e assim esclarecer seus motivos por afastar-se dos homens. Compreendo suas razões, mas não posso dizer que as compartilho. De minha parte, conviver com as turbulências da multidão, com os erros dos outros, com aqueles que correm sem sentido, não é nem de longe decepcionante – afinal, são pessoas, e delas não podemos esperar algo de diferente do que agir com as ferramentas que possuem. Há que selecionar bem aqueles com os quais resolvemos estabelecer vínculos, é certo, mas para além disso, para a vida como um todo, para mim é um objetivo passar imperturbável pela mais difícil das pessoas. Porque mesmo em suas confusões e desandanças, há algo de inegavelmente humano em tudo que o humano faz, há uma sinceridade de coração que tenta incansavelmente esticar seus ramos por detrás das camadas de lodo acumulado. Mesmo em seus redemoinhos de ignorância, o ser humano ainda é uma obra da natureza, ainda reflete essa perfeição, e em suas danças – sempre um pouco doloridas, sempre em busca de algo – encontro uma infinita fonte de inspiração. Nenhuma vista é para mim mais doce ou tenra do que a dos homens e mulheres vivendo suas vidas.

Ao final, buscam as mesmas coisas, e não deixo que me enganem as formas. Conviver entre eles para mim é estar diante da mais rica mina de tesouros, na qual posso encontrar qualquer pedra preciosa que eu precise para adornar meu caminho, ou cuja beleza sirva de inspiração para minhas palavras. Entre eles encontro meu lar, e para eles é aquilo que cultivo. Mas não se engane, meu amigo, dançar junto não é o mesmo que mesclar-se. É justamente nesse ponto que posso não perder-me, porque vendo-os como são, sei também como sou. E como de seus dias e noites muito colhi, nos meus momentos de solitude e recolhimento, muitas flores tenho para apreciar e muito frutos para alimentar-me até que seja hora de sair a vê-los outra vez.

As ervas daninhas já fizeram o estrago no solo do mundo – o que nos resta fazer agora é nutrir esse solo, para que aquelas plantas que murcharam, ao estarem prontas para florir novamente, tenham de onde se alimentar, e por isso eu escolho não afastar-me delas, mas sim manter minhas palmas abertas, e meu coração caminhando alguns passos antes de meu peito, onde ele esteja visível, aberto e à disposição. Afinal de contas, é para isso o trabalho de fortalecê-lo.

Do Sol, meu amigo, prefiro ser a luz, que toca e aquece e ilumina diretamente a todas as coisas. E que mesmo quando não está, deixa ainda um rastro de seu calor.

Em breve estarei novamente passando por sua porta,

O Viajante.

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